sábado, 2 de julho de 2011

O Analista de Dolores

Meu analista tinha uma paciente chamada Dolores. Dolores não conhece a dor, e portanto tampouco reconhece fraquezas.

Limites, presumo, são maneiras de delimitar onde deve começar a transgressão. Interessante que Dolores transgride pensando que agride. Mas sabe que não faz mal a ninguém. E isto detona a vida de Dolores. Tira ela do sério saber que suas transgressões plenas de gestos de sedição trazem aos outros mais prazer. Sedução.

Certo dia, estava na sala de espera quando Dolores tropeçou em mim enquanto expulsava-se aos prantos do consultório. Virou, mirou, mas parecia não ter angariado as energias para uma apologia. O olhar cúmplice bastou. Depois daquele dia, nossos encontros incidentais na sala de espera ganhariam novo sentido. Sentido incerto, duvidoso, pois como só descobri depois, Dolores não vê o mundo sob a ótica das responsabilidades. Para ela, o que temos são deveres, obrigações, especialmente aqueles entre nós que elegem se tornar cúmplices daquele olhar que quase pede desculpas. Quase.

Não conheci pessoa que em sala de espera de analista se sentisse tão a vontade quanto Dolores. Somente ela era capaz de colocar seus pés sobre a pequena mesa de antiquário repleto de livros e revistas de consultório de dentista e ficar estirada, quase deitada, aguardando a vítima, o próximo paciente impaciente querendo ler Caras ou ver fotos do Sebastião Salgado. Depois do primeiro susto, diante da negativa contundente e fria de Dolores:

- Com licença?
- Não. Num tiro o pé daí nem fudendo. Minto. Só fudendo. O banheiro é ali, vamo lá?

Poucos arriscavam ir ao lavatório com Dolores. As reclamações quanto ao comportamento de sua paciente, meu analista rapidamente convertia em razões para reflexões mais egocêntricas e relevantes para quem paga para ser ouvido:

- Porque ela te incomoda?

Só Dolores. Dolores não conhecia a dor, e portanto não reconhecia fraquezas. Me lembro daquele dia em que fui ao lavatório com ela pensando o que todo mundo pensava.


3 comentários:

  1. Estão aí as suas respostas, Fernando. As delas, quais seriam?

    ResponderExcluir
  2. Não sei não, preciso pensar. Dolores espalha dor e prazer sem se preocupar muito quando é um ou quando é o outro.

    ResponderExcluir
  3. Dolores não quer o corpo dos homens, quer a sua alma.

    ResponderExcluir